quarta-feira, 26 de dezembro de 2007

Amém, Dona Etelvina, amém!

Dona Etelvina estava feliz naquela manhã. O verão desfilava lindo pelo céu de Ipanema e, pelo visto, não seria aquela coisa irritantemente cinza do ano passado. “Ai”, pensou Dona Etelvina, “que lindo hino de louvor está tocando no rádio”. Perfeito para uma manhã de trabalho sem patrão em casa para incomodar. Não queria que a entendessem mal. Seu Jarbas era um homem muito educado, fino, elegante, respeitador. Muito solitário, obtuso e misterioso, é verdade. Mas também, vocês queriam que os homens de bem portassem um jeito de desfile de sambódromo? Não, ela tinha certeza, o distanciamento trajando Armani preto de seu patrão era a prova irrefutável da retidão de sua alma. Amém, Seu Jarbas, amém!

Mas não era atitude de temente a Deus ficar fofocando consigo mesma sobre os hábitos e trejeitos de outro filho do bom criador, mesmo que seja o que lhe paga o salário, embora este não tenha a corretude de lhe assinar a carteira, vejam só. Mas não importa, a boa senhora sabia que não nos cabe decodificar os desígnios celestiais. Ela ia, isso sim, dar uma boa limpeza naquele escritório sempre trancado, que deveria estar uma poeirada só!

Dona Etelvina não havia estudado o bastante para formular o conceito com todas as letras e estrutura lógica, mas intimamente sabia: há dois tipos de ordem. As expressas, que devem ser respeitadas. E as tácitas, que devem ser temidas.

O escritório ficava sempre trancado e havia a ordem implícita de não entrar lá. Nas primeiras semanas não entrou, Seu Jarbas não reclamou, então era porque não deveria entrar. Simples assim.

Mas o dia estava lindo, o rádio divinamente inspirado, a chave do lado de fora da porta e ninguém em casa para perceber aquela pequena transgressão. "Qualquer coisa, entrei para limpar", convenceu-se Dona Etelvina. Girou a chave e entrou, segurando o ar.

Dona Etelvina era dotada de uma alma simples, e por isso seus olhos não percorreram as paredes lotadas de estantes com livros, ou a mesa de trabalho cheia de papéis espalhados, na parede oposta à porta. O óbvio ficou para o narrador. Ela lançou a atenção diretamente em um imenso aquário que ficava exatamente no centro do escritório. Era uma caixa de vidro tão grande quanto um carro, ou maior, isso, como se fosse um imenso carro cheio de água transparente.

A faxineira nunca havia visto nada tão grande. Mal tivera contato com aqueles aquários-sacos-transparentes, contendo um peixinho desmilingüido que fugia da feira para morrer nos apartamentos. Por isso não conseguiu deixar de se aproximar daquela semi-piscina de vidro, daquele aquário maior que um ataúde, que parecia ter mãos que seguravam o tempo e o ar dentro do escritório.
Ela não viu, mas o narrador pôde perceber que sua pele ia ficando azulada, e logo todo o corpo adquiria um aspecto aquoso. Luzes de aquário, filtradas pela água, já as conhecemos. Mas Dona Etelvina talvez se julgasse líqüida, nunca sabemos direito como as pessoas se vêem no espelho.

Quando chegou a menos de um palmo do centro do aquário, tão pequenina diante daquela imensidão, teve um breve impulso de encostar a ponta do nariz no vidro, e espalmar as mãos. Conteve-se de pronto: pois se sujaria o vidro, como se faz nas janelas! Deslumbrada, porém ainda faxineira zelosa.

Zelosa, mas nunca na vida preparada para ver o que viu. Dentro do aquário, havia um gigantesco castelo feito de livros. Encaixados, de poucos se podia ver o nome. Vislumbrou alguns títulos, sem entender a ironia óbvia e rasteira da história. Eram eles: “Moby Dick”, “O velho e o mar”, “Vinte mil léguas submarinas” e “Odisséia”. Nenhum peixe.

Tentando entender, tomou um susto quando ouviu atrás de si a voz de Seu Jarbas, que rompia a estranha aura daquele escritório: “A senhora esqueceu o rádio ligado perto demais do tanque cheio. Não eletrocutemos as roupas, solitárias e ensaboadas, pois os culpados são sempre quem as veste. Ou lava”. Dona Etelvina cambaleou como um Nureyev pós-Stolichnaya, mas cessou o dançar mameluco com uma graça de Ana Maria Botafogo ante o sorriso de seu patrão. A frase, a situação, o temor do inferno e a menopausa a levaram a crer que algo de terrível poderia lhe acontecer. Criara imagens mentais nas quais limpava as altas janelas do apartamento e despencava, ou pior, a estante poderia cair em sua pobre e fiel cachola, e ainda afoga-la no estranho aquário, valha-me Deus! Mas o sorriso que se abria em sua frente revelara uma ternura, ainda que de um contido mais para elegância do que para vergonha, nunca lançada por esse rosto. Uma fração de segundos, esse foi o tempo para os músculos faciais de Seu Jarbas assumirem seu ritmo normal de contrações o levando a se retirar para um canto ignorado da casa. Permaneceu Dona Etelvina, coluna retesada, mão direita com espanador em riste acima da cabeça, a leve elipse formada por seu braço dando o retoque no ponto de interrogação que a laboriosa senhora acabara de se tornar.

Os dias se sucederam em fila indiana, mas o ocorrido jamais foi abordado. Poderia ser dito que alguém estava evitando ou sendo evitado, mas o contato entre ambos sempre foi esporádico e curto. Mas os pensamentos da diarista fervilhavam. Cada vulcão natural é um assassino sem culpa, pois não possui consciência das catástrofes de suas erupções. Não seria o caso da fervorosa Dona Etelvina, que jamais dormiria novamente ao saber que o derramar do magma incandescente de sua alma vitimou qualquer intimidade da vida de Seu Jarbas. Ou ainda pior, verteu em cinzas a possibilidade de se manter empregada. Decididamente, ela poderia conviver com o fato de seu patrão ser um afogador de livros, porque ele é bom de se trabalhar, e tinha convicção de que sua carteira seria assinada em breve! Isso mesmo, sua CTPS não seria o cume da torre naquele castelinho do aquário!

Mas ela precisava retornar ao escritório. Essa certeza possuiu sua alma de forma corsária, alimentando cada curiosidade que intensamente lhe agitava o íntimo. Não que épicas batalhas não fossem travadas em sua mente, com o intuito de expulsar esses desejos. Mas o resultado final era sempre o mesmo: Dona Etelvina se via ainda mais acuada em seu vazio de soluções. Como aquele que ama em silêncio, eternamente condenado à saleta de espera pela reciprocidade incerta e, por isso, dolorosa. Não haveria jeito, mais uma vez o cômodo proibido seria violado.

O coração rodopiava, como na adolescência relativamente longínqua, no mesmo ritmo dos giros da chave. Acariciou calmamente as duas portas de madeira escura, antes de empurra-las, como se quisesse absorver a solenidade que delas irradiava para não destoar tanto do universo particular por ambas guardado. E com o rosto espantado foi deixando que as estantes cheias de literatura envolvessem seu corpo passo a passo. Fez seus olhos passearem calmamente por cada capa dura e móvel velho, pois intimamente notara algo diferente. Sim, havia uma estranheza que ainda não conseguira identificar, e seu olhar foi assumindo um ar de desafio. Um olhar que poderia ter sido perfeitamente dado por uma charada, pois ao contrário do que pensamos, muito das expressões que nossos olhos transmitem é copiado dos joguetes abstratos que animam nosso dia a dia. E eis que vemos o sorriso da senhora do escritório proibido iluminar-se. Sim, com a mesma alegria de quem acaba de perceber a sétima obviedade de um jogo de sete erros. O aquário, aquela mesma forma cúbica que tanto lhe fascinou, havia sumido. No local por ele antes ocupado, agora estava um grande livro de aparência milenar.

Foi se aproximando devagar. Devagar mesmo. E com a mesma vagareza foi saboreando cada emoção que trespassava seu estômago. Mal estava se contendo em si quando, com o objeto já em mãos, percebeu que adornadas letras formavam o seguinte nome na capa: Etelvina Adelaide de Madalena. Maravilhada, percorria os dedos calejados nas páginas de papel envelhecido. Uma a uma. Todas em branco. De repente, seu corpo foi tomado pela felicidade infantil das sensações de um primeiro beijo roubado. E ela esboçou um sorriso. E ela certificou um sorriso. E ela gargalhou como nunca. Reinventar-se pode ser uma necessidade, mas renascer é a poesia da qual esta laboriosa senhora acabara de se tornar verso. A intensidade do momento foi tamanha que ela nem pôde perceber Seu Jarbas recostado em uma das diversas estantes, observando-a com o mesmo sorriso terno da última violação da tal da ordem implícita. Amém, Seu Jarbas, amém!